7.12.05

O homem frigideira


por Andre

Semana passada foram lançados dois livros baseados em notas de aulas que físicos célebres deram no CBPF na década de 50: Física Nuclear Teórica, de Richard Feynman, e Classical Statistical Mechanics, de Leon Rosenfeld. Mais uma iniciativa deste produtivo Ano Mundial da Física que já vai deixando saudades.

Anteontem encontrei o livro de Feynman numa livraria e dei uma folheada. Espalhamento em potenciais, decaimento alfa/beta, phase shifts, modelos de camadas, essas coisas imutáveis da Física Nuclear que provavelmente nem se ensina mais nas graduações. É um texto de interesse fundamentalmente histórico, claro: é destino das notas de aulas serem esquecidas quando o tema amadurece o suficiente para aparecerem livros-textos, de exposição muito mais elaborada. O livro do Rosenfeld eu não vi, mas, como o título me leva a crer, deve ter resistido melhor ao tempo.

Motivado pelo lançamento dessas notas de aulas, resolvi reler no meu Deve ser brincadeira, Sr Feynman o trecho em que ele fala de sua estadia no Brasil (você pode encontrar o texto on line). Foi em 1951 que ele passou um ano sabático aqui, colaborando no CBPF de Lattes e Leite Lopes, ministrando inúmeras aulas e seminários. Paralelamente aprendeu a tocar frigideira (isso mesmo, com uma colher) num bloco carnavalesco, paquerou aeromoças da PanAm, "introduziu" o português como língua oficial da Academia Brasileira de Ciências e mais outras coisas inusitadas que o tornaram famoso.

Já há bastante tempo percebi que alguns físicos mais velhos não se sentiam à vontade quando os mais jovens falavam sobre a visita de Feynman ao Brasil. Claro, não sei de nenhuma fofoca mais escabrosa, mas atribuo esse comportamento ao que acabou aparecendo naquele pequeno relato. Lá Feynman frequentemente faz alusões ao jeitinho ("astúcia") brasileiro. Por exemplo, lhe foi sugerido que fizesse suas aulas de manhã no CBPF, pois de tarde a praia era melhor. "E os alunos?" Os alunos preferiam aula à tarde, mas Feynman deveria escolher o
que fosse mais conveniente para ele. Isso impressionou Feynman, como num choque de culturas. Então tá... :)

No seu relato ele tambem faz várias alusões à estranha formação brasileira da época (?) que valorizava sobremaneira a erudição, ou seja, o conhecimento enciclopédico da Física, em detrimento da assimilação conceitual e aplicação prática. Fez inclusive um discurso marcante sobre isso na Faculdade Nacional de Filosofia. Aponta também uma característica que frequentemente estrangeiros observam: os estudantes brasileiros não fazem perguntas. Conheci mais de um físico americano impressionado com esse comportamento. Não sei de onde vem isso.

Assim, acho que espíritos mais sensíveis ficaram um pouco chateados com essa narrativa de Feynman sobre sua visita ao Brasil. Não deveriam ficar tão chocados. Se continuarmos lendo o livro saberemos o que Feynman fala sobre o Japão e a Suécia, por exemplo. De cada país ele sempre apresenta lados (pretensamente) negativos (japoneses muito formais ou a tradição das gueixas) e positivos (a busca nipônica da perfeição). Feynman não pode evitar em ser sincero. E sendo assim, sempre falará o que realmente achou das pessoas, tanto seus defeitos como suas virtudes. Faz parte do seu show.

Também acabei esbarrando (esse post já está ficando longo demais...) no capítulo em que fala de sua depressão em Cornell. Pois é, mesmo o furacão Feynman, a alegria de fazer Física em pessoa, o instigador de gerações, também teve sua maré baixa. Foi logo após o fim da Segunda Guerra: havia terminado sua tese de doutorado (a integral de caminho) e participado do projeto Manhatan (construção da bomba atômica); na mesma época sua esposa falece após longa doença e, pouco tempo depois, perde seu querido e influente pai. Feynman estava em Cornell dando aulas e conseguia fazer apenas isso. Ficava muito culpado por não estar produzindo pesquisa, mas não podia escrever duas frases sobre raios gama sem se desanimar. Achava que estava acabado para a Física, isso um ano antes de atacar o problema da renormalização que lhe rendeu o Nobel. Chegou mesmo a pensar em pedir demissão. Mas Robert Wilson, futuro Prêmio Nobel também, que era seu superior, percebendo o baixo astral de Feynman e a consequente crise de culpa, lhe esclareceu que contratar um professor é uma aposta, com riscos implícitos, e que naquele momento estavam muito satisfeitos com o trabalho que Feynman estava realizando (ou seja, apenas dar aulas). Isso reconfortou Feynman e em alguns meses voltou a ser uma usina de idéias.

Duas lições. A primeira: ciência é uma aposta de longo prazo. A segunda: mesmo Feynmans tiveram seus períodos de crise profissional. Isso pode ser reconfortante.

Por fim, um livro em português que conta muitas das anedotas de Feynman (e seu rival Gell-Mann) é o Feynman e Gell-Mann. Luz, Quarks, Ação, do professor Rogério Rosenfeld, aqui do IFT. Vale a pena dar uma olhada.